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Doppler vascular: o segredo prático que a maioria dos técnicos não conta (e que faz diferença no laudo)
Eu estava tomando um café com a equipe do meu laboratório quando desabou uma história que mudou a maneira como eu faço Doppler vascular até hoje. Um colega havia perdido uma estenose grave porque usou ângulo errado e ganhou — sem querer — um laudo falso-negativo. Resultado? Reagendamento, desgaste com o cardiologista e um paciente que ficou inseguro.
Foi aí que decidi sistematizar tudo o que funciona de verdade, no campo, com o aparelho Philips Affiniti 70 que uso na Clínica Vascular São João. Vou compartilhar o passo a passo, os atalhos que ninguém ensina e os erros que eu aprendi a não repetir. Pronto para tomar esse café comigo e aprender o que realmente salva tempo e diagnóstico?
Como preparar o exame para evitar laudos que enganam
Preparação é metade do diagnóstico. Na prática, isso significa mais que pedir jejum: é posicionamento, ficha clínica e protocolo claro.
- Confirme o motivo do exame e sintomas (dor, edema, claudicação). Um laudo sem contexto vira palpite.
- Posicionamento do paciente: para venoso, decúbito dorsal e, quando avalia refluxo, em pé; para arterial, decúbito com membro relaxado.
- Documente histórico de cirurgia, próteses ou stents — metais mudam tudo no modo B.
Equipamento e sondas: escolha certa, ganho certo
Na minha bancada eu alterno entre sondas lineares 7–12 MHz para troncos superficiais e 2–5 MHz curvilíneas para ilíacas e regiões profundas. Por quê? Frequência mais alta dá resolução, mas penetra pouco — é como usar uma lupa vs. binóculos.
- Linear 7–12 MHz: carótidas, membros superiores, superficiais.
- Convexa 2–5 MHz: artérias ilíacas, aorta em pacientes obesos.
- Transdutor contínuo (em alguns aparelhos): raramente necessário; cuidado com artefatos.
Configurações que realmente importam (e como ajustá-las)
Configurações são onde a maioria erra. Pequenas alterações salvam ou estragam um laudo.
PRF (Pulse Repetition Frequency) — ajuste como se regulasse um radar
PRF define a sensibilidade para fluxos rápidos. Se estiver muito baixo, você verá aliasing (aquilo que parece “saltar” o sinal). Se estiver muito alto, perde fluxos lentos.
Regra prática: comece médio, reduza para visualizar refluxo venoso; aumente para velocímetros arteriais altos.
Angle correction — não invente moda
Mantenha o ângulo entre feixe e fluxo menor ou igual a 60°. Isso é crucial porque a velocidade calculada depende disso. Pense no ângulo como o reflexo de uma lanterna em uma parede: se você ilumina de lado, a sombra distorce tudo.
- Se o ângulo for >60°, rejeite a medida e reposicione a sonda.
- Use alinhamento longitudinal do vaso sempre que possível.
Gain e wall filter — ajuste fino
Gain excessivo “borrifa” cor e esconde o spectral. Gain baixo, perde sinal. O wall filter elimina vibrações de baixa frequência (movimento da parede), mas se colocar alto demais perde refluxo venoso.
- Gain: ajuste até ver parede e lúmen sem “blooming”.
- Wall filter: baixo para venoso; médio/alto para artérias com alta pulsatilidade.
Protocolo prático passo a passo (mapa de exame que uso diariamente)
- 1) B-mode: mapeie o vaso, identifique placas, calcificações e sequência anatômica.
- 2) Color box: centralize a área de interesse, ajuste scale/PRF e gain de cor.
- 3) Spectral Doppler: posicione volume de amostragem (sample volume) no fluxo, corrobore com colorido e corrija ângulo.
- 4) Medidas: registre velocidades sistólicas pico (PSV) em artérias e tempos/velocidades em documentos sequenciais.
- 5) Testes funcionais: compressão e manobra de Valsalva para refluxo venoso; proximais e distais para confirmar o nível de obstrução.
Documentação: não economize em imagens
Salve imagens B-mode, coloridas e espectrais com medidas. O laudo é prova e defesa clínica. Eu sempre salvo pelo menos três frames espectrais por segmento avaliado.
Interpretação prática: o que um valor de velocidade realmente significa
Velocidade isolada é só um número. A sensatez vem da comparação com segmentos proximais e distais.
- Estenose moderada: aumento focal da PSV (por exemplo, relação PSV lesion/PSV prox >2). Não memorize números soltos — compare.
- Trombose venosa profunda: perda da compressibilidade + ausência de fluxo colorido e espectral.
- Insuficiência venosa: refluxo >0,5s em veias superficiais durante manobra.
Erros recorrentes que eu não cometo mais (aprendi do modo difícil)
- Usar ângulo >60° por preguiça de reposicionar — já gerou um laudo enganoso.
- Não documentar um segmento por dificuldade técnica — sempre explique e tente outra janela.
- Confundir aliasing com turbulência: aliasing tem bordas nítidas e muda com PRF; turbulência aparece irregular e com espectro broad.
Se há uma lição: técnica e documentação valem mais que pressa e rotina.
Perguntas frequentes (FAQ) — respostas diretas que o médico e o paciente querem ouvir
1) Doppler vascular dói?
Não. É exame não invasivo. A compressão para estudo venoso pode causar desconforto em áreas doloridas, mas nada comparável a um procedimento invasivo.
2) Quanto tempo dura um exame completo?
Depende do estudo. Um rastreio de carótidas pode levar 15–30 minutos; um mapa completo de membros inferiores pode ir de 30 a 60 minutos, dependendo da técnica e das manobras.
3) O que significa quando dizem “aliasing” no Doppler?
Aliasing é um artefato de velocidade quando o PRF é baixo — o sinal “dobrando” para a escala oposta. Ajuste PRF ou mude a janela de avaliação para confirmar se é artefato ou fluxo real.
Minha checklist rápida antes de finalizar o laudo
- Nome do paciente, indicação clínica, equipamento e sonda usados.
- Segmentos avaliados e imagens arquivadas.
- Velocidades medidas com ângulo documentado (≤60°).
- Observações técnicas (obesidade, calcificação, janelas limitadas).
Quer um conselho de amigo? Não subestime a entrevista clínica nem economize em imagens. O bom Doppler nasce do protocolo, da paciência e da pequena atenção ao ajuste fino do aparelho.
Se você já teve um laudo que parecia “estranho”, conte aqui nos comentários: como foi, que aparelho estava usando e que segmento avaliou? Vou responder com sugestões práticas.
Fontes de autoridade: para diretrizes e recomendações, consulte a Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV) — https://www.sbacv.org.br e orientações do Ministério da Saúde — https://www.gov.br/saude. Estudos e protocolos internacionais como os da American Institute of Ultrasound in Medicine (AIUM) também trazem guias úteis sobre Doppler vascular.