O cheiro de café forte misturado ao de antisséptico paira no ar dos grandes centros de convenções. É lá que o “andar de cima” da medicina brasileira se encontra, anualmente, para debater os rumos da Angiologia e Cirurgia Vascular. Mais um Congresso Brasileiro se foi, deixando para trás um rastro de apresentações grandiosas, tecnologias de ponta e, claro, aquela sensação agridoce de que, para cada avanço, há um muro de desafios esperando do lado de fora dos auditórios climatizados.
De fato, ver de perto o que se discute em um evento como este é quase um exercício de futurologia. Técnicas minimamente invasivas que antes pareciam ficção científica hoje são realidade. Próteses que prometem anos de vida com qualidade para pacientes com aneurismas complexos. Tudo muito bonito no Power Point, mas a pergunta que não quer calar na cabeça de qualquer jornalista com alguns anos de estrada é: e a gente? E a Maria, que pega três ônibus para uma consulta no SUS com varizes que doem há anos? O debate é válido. Necessário, aliás. Mas os pés, como sempre, precisam estar fincados na realidade do nosso Brasil.
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O Que Se Debate nos Corredores e Auditórios?
Nos corredores apinhados do último Congresso Brasileiro de Angiologia e Cirurgia Vascular, a conversa era uma só: inovação. O entusiasmo com as novas terapias endovasculares era palpável. É inegável, a área tem avançado a passos largos, trazendo menos dor e recuperação mais rápida para muitos. O público, em sua maioria, era composto por cirurgiões vasculares e angiologistas, sedentos por novidades que pudessem aplicar em seus consultórios e hospitais.
“Olha, a gente tá vendo umas coisas que… sabe? Há dez anos, era impensável. A evolução das técnicas para tratar aneurisma de aorta, por exemplo, é fantástica. Dá para fazer milagre, quase”, comentou um colega mais velho, com os olhos vidrados em um dos estandes de equipamento. Ele gesticulava, animado, mas no fundo, a gente sabe que “milagre” no Brasil, muitas vezes, é conseguir o diagnóstico a tempo.
Entre os temas mais quentes, destacaram-se:
- Novas abordagens para o tratamento de varizes, com destaque para métodos menos invasivos.
- Avanços no manejo da doença arterial periférica e pé diabético, uma chaga social que ainda causa milhares de amputações anuais.
- Debates sobre o uso de inteligência artificial no diagnóstico e planejamento cirúrgico.
- Estratégias de prevenção de doenças vasculares, com foco em educação e rastreamento populacional.
Varizes, Aneurismas e o Dia a Dia do Brasileiro
A verdade é que, para a maioria dos brasileiros, Angiologia e Cirurgia Vascular se traduzem em problemas muito mais comuns, e muitas vezes ignorados, do que as complexas discussões sobre endopróteses ramificadas. As varizes, por exemplo, não são apenas um problema estético. Elas causam dor, inchaço, feridas e, em casos graves, podem levar a tromboses. E a fila para o tratamento no sistema público é, na maioria das cidades, um atestado de descaso.
No balcão de uma farmácia popular na zona leste, Dona Zilda, 68 anos, mostrava a perna para a atendente. “Olha aqui, minha filha. Isso não sara. Já fui no postinho, eles me deram umas pomadas, mas a dor… a dor não passa. Minha neta disse que no congresso lá eles falam de umas injeçãozinhas, né?”, desabafou ela, com um misto de esperança e cansaço nos olhos. Essa é a realidade da maioria. Os avanços existem, mas esbarram na barreira do acesso.
A Tecnologia Chega, Mas a Quem?
É aqui que a história do Congresso, com todo o seu brilho de inovação, ganha cores mais cinzentas. A disparidade no acesso às tecnologias apresentadas é gritante. Enquanto hospitais privados de ponta já realizam procedimentos que usam robótica e navegação 3D, a esmagadora maioria da população ainda luta por um diagnóstico simples e uma consulta com um especialista. A conversa no congresso é de primeiro mundo, mas a realidade da saúde vascular no Brasil ainda é de terceiro.
Para ilustrar a dicotomia, basta olhar para a tabela abaixo:
Avanço Discutido no Congresso | Desafio de Acesso na Rede Pública |
---|---|
Terapia endovascular avançada para aneurismas complexos | Alto custo dos materiais, indisponibilidade em muitos centros do SUS. |
Tratamento de varizes a laser ou radiofrequência | Equipamentos caros, não padronizados na maioria dos hospitais públicos. |
Diagnóstico precoce com angiotomografia de alta resolução | Longas filas para exames de imagem, falta de aparelhos em muitas regiões. |
Cirurgias minimamente invasivas para doenças arteriais | Necessidade de equipes altamente treinadas e infraestrutura especializada. |
A mesa de discussão sobre “O impacto das novas tecnologias na saúde pública” foi interessante, mas parecia mais um desabafo do que um plano de ação concreto. A verdade nua e crua é que, no fim das contas, o buraco é bem mais embaixo. E não se resolve só com um congresso, por mais bem-intencionado que seja.
Formação e o Futuro: Um Bisturi Afiado para um Campo Minado
Outro ponto crucial que sempre se levanta nesses encontros é a formação de novos profissionais. A Angiologia e Cirurgia Vascular exigem anos de estudo e dedicação. Os residentes, muitos deles recém-saídos das faculdades, circulavam com cadernos e celulares, absorvendo cada palavra dos professores. Eles são o futuro, sim. Mas que futuro? Um futuro onde a tecnologia está a pleno vapor, ou um futuro onde eles terão que se desdobrar para aplicar o que aprenderam em realidades muitas vezes precárias?
“A gente sai daqui com a cabeça borbulhando de ideias, sabe? Mas aí você volta pro seu hospital-escola e a gente não tem nem um doppler direito, às vezes. É frustrante, pra ser sincero”, confessou uma jovem residente, que preferiu não ter o nome divulgado, com um suspiro. A fala dela ecoa a de tantos outros. O sonho da cirurgia de ponta esbarra na falta de investimento, de leitos, de pessoal.
Onde a Prevenção Encontra a Realidade do SUS
A prevenção, tema tão caro a qualquer área da saúde, teve seu espaço. Campanhas sobre a importância de controlar o diabetes, a hipertensão e o colesterol para evitar doenças vasculares foram pautas importantes. Mas, na ponta do lápis, como educar uma população que muitas vezes mal tem acesso a saneamento básico e alimentação adequada? A Saúde Vascular depende de hábitos saudáveis, mas também de condições de vida dignas.
É uma batalha inglória, por vezes. Médicos e pesquisadores fazem a sua parte, desvendam os males, propõem soluções. Mas a macroestrutura social e de saúde pública muitas vezes opera em outra velocidade, noutra dimensão. O Congresso Brasileiro de Angiologia e Cirurgia Vascular é um farol que ilumina o caminho da ciência, sem dúvida. Mas a ilha onde estamos, com suas filas, suas faltas e suas urgências, ainda precisa de muito mais do que luz.
Ao fim das contas, a bagagem de um congresso como este não é feita apenas de conhecimento técnico. É feita também de um olhar mais aguçado para a complexidade da saúde no Brasil. Um passo à frente na ciência é sempre bem-vindo. Mas sem que a sociedade como um todo dê alguns passos, os avanços ficarão restritos a poucos. E isso, caro leitor, é o que realmente precisa ser dissecado.