A cena é quase um clichê de filme: o cirurgião de máscara, a luz forte sobre o peito aberto do paciente, o som ritmado dos monitores. Uma batalha de vida ou morte travada com bisturis, pinças e uma equipe inteira em um campo de batalha de poucos centímetros. Por décadas, essa foi a imagem da cirurgia vascular de alta complexidade. Uma imagem que, aos poucos, está sendo substituída por outra, muito menos dramática, mas igualmente revolucionária: um médico olhando para uma tela, guiando fios finíssimos por dentro do corpo do paciente. Sem grandes cortes. Sem o trauma de uma cirurgia aberta.
Isso não é ficção científica. É o dia a dia do tratamento endovascular, uma abordagem que trocou a lógica do “abrir para consertar” pela do “entrar para resolver”. E a porta de entrada, na maioria das vezes, é uma simples punção na virilha ou no braço.
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O que é, afinal, o Tratamento Endovascular?
Imagine ter um problema complexo em um encanamento dentro da parede. A solução tradicional seria quebrar a parede, trocar o cano e refazer tudo. A solução moderna? Inserir uma microcâmera e ferramentas especiais pelo próprio ralo, navegar até o problema e consertá-lo por dentro. A lógica do tratamento endovascular é exatamente essa.
Em vez de um grande corte para expor uma artéria ou veia doente, o cirurgião vascular ou angiologista faz um pequeno furo, geralmente na artéria femoral (na virilha). Por ali, ele insere um conjunto de materiais que parecem delicados, mas são de altíssima tecnologia: cateteres (tubos finos e flexíveis), fios-guia que servem de “trilho”, balões que dilatam áreas estreitadas e os famosos stents, pequenas molas metálicas que mantêm o vaso sanguíneo aberto.
Tudo isso é acompanhado em tempo real por telas de alta resolução, usando um tipo especial de raio-X. O médico não está olhando para o órgão do paciente, mas para um mapa vascular detalhado, guiando seus instrumentos com uma precisão milimétrica por essa rede de “estradas” internas do corpo.
A Cirurgia que não Parece Cirurgia
Para o paciente, a diferença é brutal. No lugar da anestesia geral, muitas vezes basta uma sedação leve e anestesia local. Em vez de uma cicatriz de palmos, um curativo discreto. A dor no pós-operatório é incomparavelmente menor e o tempo de internação, que antes era de vários dias ou semanas, pode ser de apenas 24 ou 48 horas.
A recuperação é outra história. Voltar a andar, a trabalhar, a viver. Tudo acontece em uma fração do tempo que a cirurgia convencional exigia. Para um idoso com um aneurisma ou para um trabalhador com artérias das pernas entupidas, isso não é apenas conveniência. É qualidade de vida.
Para quem serve essa revolução?
A lista de doenças tratáveis por essa via só cresce. É uma verdadeira mudança de paradigma em várias áreas da medicina vascular.
- Aneurismas: Aquela dilatação perigosa numa artéria, uma verdadeira bomba-relógio, principalmente na aorta ou no cérebro. Pela via endovascular, é possível inserir uma endoprótese (um stent revestido com tecido) que funciona como um novo “cano” por dentro do aneurisma, isolando-o do fluxo sanguíneo e eliminando o risco de ruptura. É uma das aplicações mais consagradas.
- Doença Arterial Periférica: O entupimento das artérias, principalmente nas pernas, que causa dor para caminhar e, em casos graves, pode levar à amputação. Com o cateter-balão, o médico abre caminho; com o stent, ele garante que a “estrada” permaneça livre. Muitos pacientes saem do hospital andando sem a dor que os atormentava há anos.
- Varizes: Sim, até as populares varizes, que antes exigiam uma cirurgia de “arrancamento” das veias (safenectomia), hoje são resolvidas com técnicas endovasculares. O laser ou a radiofrequência são inseridos na veia doente por cateter e a “queimam” por dentro, fazendo com que o corpo a absorva. Menos hematomas, menos dor, recuperação quase imediata.
- AVC Isquêmico: Na luta contra o relógio para desobstruir uma artéria no cérebro e salvar o tecido neural, a trombectomia mecânica é a fronteira. Um cateter especial vai até o coágulo e o aspira ou o “pesca”, restaurando o fluxo de sangue em minutos.
Nem Tudo São Flores: Os Limites e os Riscos
Seria ingênuo, e jornalisticamente desonesto, pintar o quadro como perfeito. O tratamento endovascular não é uma panaceia. Primeiro, nem todo paciente ou toda doença tem indicação. A anatomia dos vasos, a localização exata do problema ou a extensão da doença podem tornar a cirurgia aberta a opção mais segura e eficaz. O bom médico sabe quando indicar um e quando indicar o outro.
E sim, existem riscos. Complicações no local da punção, reações alérgicas ao contraste usado no raio-X, e até mesmo os riscos da própria intervenção, como o deslocamento de um stent ou a perfuração de um vaso. Embora estatisticamente menores, os perigos existem e devem ser colocados na balança.
O buraco é mais embaixo quando falamos de acesso. A tecnologia é cara. Os materiais são importados. Nem todos os hospitais, especialmente na rede pública, têm a estrutura e a equipe treinada para realizar os procedimentos mais complexos. A fila de espera, quando existe a opção, pode ser longa.
Cirurgia Endovascular vs. Cirurgia Convencional
Característica | Tratamento Endovascular | Cirurgia Aberta (Convencional) |
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Tipo de Incisão | Pequena punção (milímetros) | Grande corte (centímetros) |
Anestesia | Local com sedação (na maioria dos casos) | Geral ou raquianestesia |
Tempo de Internação | Curto (1 a 2 dias) | Longo (vários dias a semanas) |
Recuperação | Rápida, com menos dor | Lenta, com mais dor e limitações |
Cicatriz | Mínima ou inexistente | Extensa e visível |
O Futuro é por Dentro? O Veredito de Quem Vê de Perto
A tendência é clara. Para um número cada vez maior de doenças vasculares, a primeira opção será a endovascular. A tecnologia avança, os materiais ficam mais seguros e os médicos, mais experientes. “Olha, no começo, a gente olhava com desconfiança. Parecia algo delicado demais”, me confessou um cirurgião com mais de 30 anos de bisturi na mão. “Hoje, é a nossa principal ferramenta. Mas o corte ainda tem seu lugar. O segredo, a arte da coisa, é saber quando usar cada arma. É a experiência que dita isso”.
No fim das contas, o sucesso não está apenas no cateter ou no stent, mas na mão que o guia. A escolha por um angiologista ou cirurgião vascular qualificado, que domine tanto o bisturi quanto o fio-guia, continua sendo o fator decisivo. A tecnologia é uma ferramenta poderosa, mas sem o bom e velho julgamento clínico, ela é só um pedaço de metal e plástico caro.
Este artigo foi elaborado por um jornalista com 15 anos de experiência na cobertura de saúde e ciência, com base em dezenas de entrevistas com especialistas e na análise de estudos e procedimentos ao longo da última década. O objetivo é traduzir a complexidade médica para o público leigo, com a sobriedade e o realismo que a apuração dos fatos exige.
Perguntas Frequentes (FAQ)
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O tratamento endovascular dói?
A dor é significativamente menor que na cirurgia aberta. O procedimento em si não costuma doer, pois é feito com anestesia local e sedação. Pode haver um desconforto leve no local da punção nos dias seguintes, mas que é facilmente controlado com analgésicos comuns.
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O plano de saúde cobre o tratamento endovascular?
Sim, a maioria dos procedimentos endovasculares está no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e, portanto, tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde. No entanto, podem existir discussões sobre a marca ou o tipo específico de material (stent, prótese), sendo importante a boa comunicação entre o médico e a operadora.
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Qual médico realiza o tratamento endovascular?
O especialista habilitado é o Angiologista e, principalmente, o Cirurgião Vascular com treinamento específico em técnicas endovasculares. Alguns Radiologistas Intervencionistas e Cardiologistas (na área de coronárias) também atuam nesse campo.
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Corro mais risco na cirurgia aberta ou na endovascular?
De modo geral, para os casos em que ambas as técnicas são possíveis, o tratamento endovascular apresenta um risco menor de complicações graves e uma mortalidade operatória mais baixa, especialmente em pacientes mais idosos ou com outras doenças associadas. Contudo, a decisão final depende de uma análise individual de cada caso pelo cirurgião.
Fontes de apuração e dados complementares: Portal de notícias G1 e Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV).