A gente vê por aí, nas ruas, nas conversas de bar, um monte de gente reclamando daquela dor na perna que não passa, do inchaço no fim do dia, das varizes que insistem em aparecer. É a circulação, dizem. Um mal que parece tão trivial, mas que carrega uma série de complicações se não for levado a sério. E enquanto a Dona Maria na fila do SUS tenta um encaminhamento, lá no luxuoso centro de convenções, a nata da angiologia e cirurgia vascular brasileira se reuniu para seu congresso anual. Um evento grandioso, com discursos cheios de termos técnicos e promessas de um futuro mais… vascularizado. Mas será que essa pompa toda se traduz em algo concreto para quem realmente precisa?

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O Show da Ciência: Entre Prazos e Patentes

Pois é, o Congresso Brasileiro de Angiologia e Cirurgia Vascular se encerrou há pouco, deixando para trás um rastro de corredores cheios, estandes reluzentes e muitos cartões trocados. Médicos de jaleco impecável, alguns com aquele ar de quem acabou de desembarcar de um voo internacional, outros com a cara cansada de quem vive no dia a dia do hospital público, todos ali. A ideia, claro, é discutir os avanços, as novas técnicas, os equipamentos de última geração que prometem revolucionar o tratamento das doenças vasculares. Parece bom, né? Quase poético.

Mas, vamos colocar na ponta do lápis: enquanto nos telões gigantes eram projetadas cirurgias com robôs e implantes que parecem saídos de filmes de ficção científica, a realidade lá fora, para a maioria dos brasileiros, é outra. A pergunta que martela na cabeça, para um jornalista que não vive de jabá, é simples: quem se beneficia de tudo isso? É para o paciente do convênio top, que tem acesso a clínicas com o que há de mais moderno, ou para o sujeito que depende daquele único aparelho de ultrassom que funciona, capenga, no posto de saúde da periferia?

A Realidade Nua e Crua da Periferia Circulatória

Os painéis de discussão abordaram temas como a aterosclerose, aneurismas, o pé diabético — um flagelo silencioso que devora membros e vidas no país. Vi apresentações sobre novas drogas, técnicas minimamente invasivas que reduzem o tempo de internação. Tudo muito bonito no PowerPoint. “O objetivo é sempre aprimorar o cuidado ao paciente, oferecer o que há de melhor”, garantiu um dos palestrantes, com uma confiança que beirava o inabalável. Mas o “melhor”, para quem?

Parei para conversar com uma cirurgiã vascular, jovem, que pedia um café e parecia ter saído de uma maratona. “Olha, é… é complicado. A gente aprende um monte de coisa aqui, técnicas que poderiam mudar a vida de muita gente. Mas aí você volta pro hospital, e falta fio de sutura, falta anestesista, falta até maca. É frustrante, sabe? Parece que vivemos em realidades paralelas”, desabafou ela, sem me dar o nome, mas com uma honestidade que fez valer a pena a insistência.

Essa é a parte que muita gente esquece quando vê a grandiosidade de um congresso como esse. Por trás dos artigos científicos revisados por pares e das palestras patrocinadas por grandes farmacêuticas, existe uma estrutura de saúde que, para muitos, simplesmente não funciona. A prevenção, que deveria ser a palavra de ordem, muitas vezes é deixada de lado. Quem tem tempo para uma caminhada ou uma dieta balanceada quando a preocupação é botar comida na mesa ou pegar três conduções para trabalhar?

Entre o Bisturi Robótico e a Fila do SUS

O congresso é, no fim das contas, um espelho. Reflete o que há de mais avançado na medicina, sim. As novas próteses vasculares, os lasers para varizes, os tratamentos para úlceras complexas… é impressionante. Ninguém discute o avanço da ciência. A questão é a velocidade com que essa ciência se capilariza para a base da pirâmide. O buraco, como se diz, é bem mais embaixo.

Há também o lado mercadológico. Cada estande é uma empresa vendendo seu peixe, seu novo produto, seu serviço revolucionário. Aparelhos caríssimos que prometem diagnósticos precisos em segundos, mas que exigem um investimento que poucos hospitais públicos, para não dizer quase nenhum, conseguem bancar. Então, a inovação, muitas vezes, fica restrita a um nicho, a um público seleto que pode pagar por ela.

Será que os grandes nomes da área, que palestravam em frente a plateias lotadas, estão realmente focados em como levar o básico, mas essencial, tratamento vascular para comunidades carentes? Ou a discussão é mais sobre qual a próxima patente, qual o próximo dispositivo que vai render milhões para a indústria? Uma pergunta incômoda, eu sei, mas que precisa ser feita.

O Que Fica? E o Que Falta?

Ao final de mais um congresso, a sensação que permanece é de um misto de esperança e ceticismo. Esperança, porque é inegável o avanço da medicina, a dedicação de muitos profissionais que realmente se importam. Ceticismo, porque a cada nova tecnologia apresentada, parece que a distância entre o que é possível e o que é acessível só aumenta.

A Dona Maria, com sua perna inchada e suas varizes saltadas, provavelmente não sabe o que é um stent revestido ou uma angioplastia com laser. Para ela, o que importa é conseguir um médico que a ouça, um tratamento que alivie a dor e, quem sabe, uma chance de andar sem sentir aquele peso que arrasta. O Congresso Brasileiro de Angiologia e Cirurgia Vascular cumpriu seu papel de palco para o que há de mais moderno. Agora, o desafio é fazer com que essa modernidade, de fato, alcance as ruas. Sem floreios, sem jargões. Apenas com a verdade dos fatos.

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