Passei boa parte dos meus 15 anos de carreira apurando pautas de saúde. Vi muita coisa. Mas poucas condições são tão cercadas de desinformação e, sejamos honestos, de preconceito, quanto o lipedema. É uma daquelas histórias que começam no consultório médico com um encolher de ombros e terminam em grupos de redes sociais, onde milhares de mulheres finalmente encontram um nome para a dor que sentem há anos.
A narrativa é quase sempre a mesma. Uma mulher, muitas vezes magra da cintura para cima, com pernas e braços desproporcionalmente grandes, pesados e doloridos. A resposta que ela ouve por décadas? “É o seu biotipo”. “Você precisa se exercitar mais”. “É só fechar a boca e emagrecer”.
Mas não é. E já passou da hora de falarmos sobre isso com a seriedade que o assunto exige.
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O que diabos é Lipedema, afinal?
Vamos direto ao ponto: lipedema não é obesidade. É uma doença crônica, progressiva, que atinge quase que exclusivamente mulheres. Caracteriza-se pelo acúmulo anormal de gordura e tecido conjuntivo, principalmente nas pernas, quadris e braços. Uma característica marcante é que essa gordura poupa os pés e as mãos, criando um aspecto de “garrote” ou “punho” nos tornozelos e pulsos.
Essa não é a gordura que você queima com uma corrida no parque. É uma gordura doente, inflamada.
“O paciente chega aqui frustrado. Ele fez todas as dietas, tentou todas as academias. A balança até diminui, mas aquela gordura específica, aquela dor, não some”, me contou um cirurgião vascular em uma pauta recente. “É porque o problema não é caloria, é celular. O buraco é mais embaixo”.
Essa gordura do lipedema dói ao toque, causa hematomas com uma facilidade assustadora e traz uma sensação de peso constante, como se a pessoa carregasse sacos de areia amarrados aos membros.
Os sintomas que ninguém vê
O impacto visual é o que primeiro chama a atenção, mas o que realmente define a vida de quem tem lipedema é a lista de sintomas que permanecem invisíveis para os outros. Colocando na ponta do lápis, os principais são:
- Dor e sensibilidade: Uma pressão leve pode causar dor intensa.
- Hematomas fáceis: Manchas roxas que aparecem sem uma pancada aparente.
- Sensação de peso e cansaço: As pernas parecem pesadas e fadigadas.
- Textura da pele: A pele pode ter um aspecto de “casca de laranja” e, com o tempo, desenvolver nódulos.
- Gordura desproporcional: Acúmulo que ignora dietas e exercícios.
A longa jornada até o diagnóstico
Por que uma doença que, segundo estimativas, pode afetar até 11% da população feminina mundial é tão desconhecida? A resposta é complexa. Envolve falta de treinamento nas faculdades de medicina, a normalização da dor feminina e a onipresente “gordofobia” que insiste em tratar qualquer acúmulo de gordura como uma falha moral.
Muitas vezes, a paciente passa por cardiologistas, endocrinologistas, ortopedistas. Ouve que é fibromialgia, problema de circulação, ou simplesmente obesidade. A jornada até encontrar um angiologista ou cirurgião vascular que conheça a doença pode levar uma década. Ou mais.
Para classificar a condição, os médicos geralmente usam uma escala de estágios, que avalia a condição da pele e a presença de nódulos de gordura.
Estágio | Característica Principal |
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Estágio I | Pele lisa, mas com gordura aumentada sob ela. |
Estágio II | Pele com irregularidades e textura de colchão, pequenos nódulos de gordura são sentidos. |
Estágio III | Grandes nódulos de gordura deformam a pele, criando dobras e lóbulos de tecido. |
Estágio IV | Presença de lipedema e linfedema (inchaço por acúmulo de linfa), condição chamada de Lipolinfedema. |
Existe luz no fim do túnel? Tratamentos possíveis
Sim, existe. O diagnóstico correto é o primeiro passo para sair da escuridão. O tratamento para lipedema é multifacetado e visa, principalmente, controlar a progressão, aliviar a dor e melhorar a qualidade de vida. Não existe pílula mágica.
A base de tudo: Tratamento clínico
É o alicerce. Envolve uma abordagem que muitos médicos chamam de “clínica”.
- Terapia de compressão: Uso de meias ou bandagens de compressão para ajudar na circulação e reduzir o inchaço e a dor.
- Drenagem linfática manual: Uma massagem específica para estimular o sistema linfático.
- Atividade física de baixo impacto: Exercícios na água, como hidroginástica ou natação, são excelentes, pois a pressão da água age como uma compressão natural.
- Dieta anti-inflamatória: Embora não elimine a gordura do lipedema, uma alimentação focada em reduzir a inflamação do corpo pode aliviar muito os sintomas de dor.
Quando a cirurgia se torna uma opção
Para muitos casos, especialmente os mais avançados, o tratamento clínico alivia, mas não resolve. É aí que a cirurgia entra em cena. Mas atenção: não é a lipoaspiração estética que vemos em revistas de fofoca.
A lipoaspiração para lipedema é uma técnica especializada, que utiliza cânulas finas e tecnologias que preservam os vasos linfáticos. O objetivo não é estético, é funcional. É remover a gordura doente para reduzir a dor, o volume e devolver mobilidade à paciente. É um procedimento reparador, que busca reverter os danos de uma doença.
No fim das contas, a luta contra o lipedema é uma maratona, não uma corrida de 100 metros. Começa com informação, passa pela busca de um profissional qualificado e exige uma mudança de paradigma. É preciso que médicos, pacientes e a sociedade entendam que aquelas pernas grossas e doloridas não são um sinal de preguiça. São o sintoma de uma doença que, finalmente, está saindo das sombras.
Este artigo foi elaborado por um jornalista com 15 anos de experiência na cobertura de temas de saúde e bem-estar, baseado em entrevistas com especialistas da área vascular e na análise de publicações científicas. O objetivo é traduzir informações complexas de forma acessível e verdadeira para o grande público.
Perguntas Frequentes (FAQ) sobre Lipedema
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1. Lipedema tem cura?
- Não há uma “cura” no sentido de erradicar a doença para sempre, pois é uma condição crônica. No entanto, os tratamentos, incluindo cirurgia e manejo clínico, podem controlar drasticamente os sintomas, impedir a progressão e devolver a qualidade de vida à paciente.
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2. Emagrecer com dieta e exercício resolve o lipedema?
- Não. Perder peso pode reduzir a gordura corporal comum, o que é saudável, mas não elimina a gordura doente e desproporcional do lipedema. Muitas pacientes relatam que emagrecem no rosto, tronco e seios, mas as áreas afetadas pelo lipedema permanecem praticamente inalteradas. A abordagem precisa ser específica para a doença.
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3. Qual médico devo procurar se suspeito de lipedema?
- O especialista mais indicado para diagnosticar e orientar o tratamento do lipedema é o angiologista ou o cirurgião vascular. Esses médicos são especializados no sistema circulatório (veias, artérias e vasos linfáticos), que está diretamente relacionado à fisiopatologia da doença.
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4. O plano de saúde cobre a cirurgia de lipedema?
- Esta é uma das maiores batalhas das pacientes. Como o lipedema foi por muito tempo confundido com obesidade ou visto como um problema estético, muitos planos de saúde negam a cobertura da cirurgia. No entanto, com laudos médicos detalhados que comprovam a natureza funcional e de saúde do procedimento (alívio da dor, melhora da mobilidade), muitas pacientes têm conseguido a cobertura através de liminares judiciais. A conscientização crescente sobre a doença está, aos poucos, mudando esse cenário.
Fonte de referência para dados gerais e conscientização pública: Portal G1 – Saúde.